domingo, 9 de dezembro de 2012

Véspera de Natal


Chegou a noite e a escuridão se estendeu por toda a terra. As luzes brilharam tanto nos palácios como nas habitações humildes e saíram as gentes a passear pelas ruas com seus vestidos novos, levando refletidas em seus semblantes a alegria e a satisfação. O ar estava impregnado do cheiro dos manjares e dos vinhos.
Eu caminhei sozinho dentro da noite, pensando n`Aquele cujo natal se festejava; pensando no ser mais célebre dos séculos, que nasceu pobre, viveu casto e morreu crucificado; pensando no facho que o Espírito Universal acendeu numa aldeia rústica da Síria e que se elevou brilhantemente sobre a cabeça dos tempos, projetando sua luz através de todas as civilizações.
Quando cheguei à praça, sentei-me num banco de madeira e contemplei através das ramas nuas das árvores, as ruas concorridas e escutei a canção dos homens que caminhavam no desfile da diversão e da alegria.
E depois de uma hora cheia de pensamentos e de sonhos, voltei a cabeça e vi um homem sentado a meu lado. Tinha nas mãos uma bengala, com cuja ponta desenhava traços confusos na areia. Disse-me então:
- És um solitário como eu.
Olhei-o fixamente, observando seu tipo, e achei que apesar dos seus trajes surrados e de seus cabelos em desalinho, infundia respeito e temor.
Como se desse conta da observação minuciosa que eu fazia de sua figura, olhou-me e com voz tranqüila disse:
- Boa noite.
E ele voltou a garatujar, com a ponta da bengala, figuras imprecisas na terra.
Por que me agradara o timbre de sua voz, pouco tempo depois lhe falei, perguntando:
- És forasteiro?
- Sim , sou forasteiro nesta terra e em todas as cidades do mundo.
- O estrangeiro esquece nessas festividades a melancolia e a tristeza na expatriação.
- Eu sou mais estrangeiro nestes dias que nos outros.
E ao dizer isso, olhou para o espaço gris; seus olhos se anuviaram e seus lábios tremeram, como se tivesse visto debuxada nas faces do espaço a figura de um país longínquo.
Eu lhe contestei, então:
- Nestas festividades, os homens como se humanizam: o rico lembra do pobre, o forte se compadece do fraco.
- Sim, respondeu-me, porém a compaixão que sente o rico pelo pobre é uma espécie de amor-próprio, e a benevolência do forte para com o fraco não é mais que uma manifestação de superioridade e orgulho.
- Talvez tenhas razão; porém, que importam ao fraco e ao pobre as pretensões e desejos que tenham o forte e o rico? O faminto pobre sonha com o pão, porém não pensa na maneira como ele é amassado.
- O que recebe não pensa, mas o que dá deve pensar profundamente.
Assombraram-me suas palavras e voltei a observar seu tipo estranho e suas roupas velhas. Depois de observá-lo um minuto em silêncio, disse-lhe:
- Parece-me que estás necessitado; aceitas uma ou duas bramas?
- Necessito de habitação, preciso repousar a cabeça.
- Toma então estas duas bramas e vai alugar uma habitação.
- Já fui a todas as hospedarias desta cidade e não encontrei morada para mim. Bati em todas as portas e não achei um amigo, penetrei em todos os refeitórios e não me deram pão.
Pensei então comigo: “Que homem mais raro; ora fala como filósofo, ora fala como um louco.”
Assim que pensei na palavra louco ele me olhou fixamente e disse em voz alta:
- Sim, eu sou louco e os que são como eu, em terra estranha, ficam sem morada, famintos e sós.
- Perdoa meus pensamentos – disse-lhe, desculpa-me. Não sei quem és; conquanto as tuas palavras me causam estranheza, eu te convido para passares a noite em minha casa.
- Mil vezes bati à tua porta e tu não ma abriste.
Assegurei-me então da sua loucura e disse-lhe:
- Vem agora e passarás a noite em minha casa.
Ele ergueu a cabeça e respondeu-me:
- Se soubesses quem sou não me convidarias.
- E quem és tu? Perguntei-lhe.
A sua voz rugiu então como as catadupas de uma corrente:
- Eu sou a revolução que sacode as nações – eu sou a tempestade que arranca as árvores, que desenvolve os séculos; eu sou o que veio à terra para lançar a espada, e não a paz.
Ergueu-se então, com o rosto iluminado, abriu os braços e nas palmas das suas mãos apareceram as cicatrizes dos cravos. Então caí de joelhos diante d`Ele e exclamei:
Jesus de Nazaré!
E ouvi o que dizia  Ele nesse momento:
- “Os homens festejam o meu nome e os costumes dos dias que circunscreveram a minha vida entre eles. Porém, eu sou estranho: vivo vagando, do Oriente para o Ocidente, e não há entre as nações quem conheça a minha verdade. As feras têm as suas tocas, as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do Homem não têm onde reclinar a cabeça”.
Impressionado, olhei para Ele, mas não vi mais que uma coluna de incenso; escutei, e não ouvi mais que a voz da noite que surgia das profundezas da Eternidade.
Gibran Kallil Gibran

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