Chegou a
noite e a escuridão se estendeu por toda a terra. As luzes brilharam tanto nos
palácios como nas habitações humildes e saíram as gentes a passear pelas ruas
com seus vestidos novos, levando refletidas em seus semblantes a alegria e a
satisfação. O ar estava impregnado do cheiro dos manjares e dos vinhos.
Eu
caminhei sozinho dentro da noite, pensando n`Aquele cujo natal se festejava;
pensando no ser mais célebre dos séculos, que nasceu pobre, viveu casto e
morreu crucificado; pensando no facho que o Espírito Universal acendeu numa
aldeia rústica da Síria e que se elevou brilhantemente sobre a cabeça dos
tempos, projetando sua luz através de todas as civilizações.
Quando
cheguei à praça, sentei-me num banco de madeira e contemplei através das ramas
nuas das árvores, as ruas concorridas e escutei a canção dos homens que
caminhavam no desfile da diversão e da alegria.
E depois
de uma hora cheia de pensamentos e de sonhos, voltei a cabeça e vi um homem
sentado a meu lado. Tinha nas mãos uma bengala, com cuja ponta desenhava traços
confusos na areia. Disse-me então:
- És um
solitário como eu.
Olhei-o
fixamente, observando seu tipo, e achei que apesar dos seus trajes surrados e
de seus cabelos em desalinho, infundia respeito e temor.
Como se
desse conta da observação minuciosa que eu fazia de sua figura, olhou-me e com
voz tranqüila disse:
- Boa
noite.
E ele
voltou a garatujar, com a ponta da bengala, figuras imprecisas na terra.
Por que me
agradara o timbre de sua voz, pouco tempo depois lhe falei, perguntando:
- És
forasteiro?
- Sim ,
sou forasteiro nesta terra e em todas as cidades do mundo.
- O
estrangeiro esquece nessas festividades a melancolia e a tristeza na
expatriação.
- Eu sou
mais estrangeiro nestes dias que nos outros.
E ao dizer
isso, olhou para o espaço gris; seus olhos se anuviaram e seus lábios tremeram,
como se tivesse visto debuxada nas faces do espaço a figura de um país
longínquo.
Eu lhe
contestei, então:
- Nestas
festividades, os homens como se humanizam: o rico lembra do pobre, o forte se
compadece do fraco.
- Sim,
respondeu-me, porém a compaixão que sente o rico pelo pobre é uma espécie de
amor-próprio, e a benevolência do forte para com o fraco não é mais que uma
manifestação de superioridade e orgulho.
- Talvez
tenhas razão; porém, que importam ao fraco e ao pobre as pretensões e desejos
que tenham o forte e o rico? O faminto pobre sonha com o pão, porém não pensa
na maneira como ele é amassado.
- O que
recebe não pensa, mas o que dá deve pensar profundamente.
Assombraram-me
suas palavras e voltei a observar seu tipo estranho e suas roupas velhas.
Depois de observá-lo um minuto em silêncio, disse-lhe:
-
Parece-me que estás necessitado; aceitas uma ou duas bramas?
-
Necessito de habitação, preciso repousar a cabeça.
- Toma
então estas duas bramas e vai alugar uma habitação.
- Já fui a
todas as hospedarias desta cidade e não encontrei morada para mim. Bati em
todas as portas e não achei um amigo, penetrei em todos os refeitórios e não me
deram pão.
Pensei
então comigo: “Que homem mais raro; ora fala como filósofo, ora fala como um
louco.”
Assim que
pensei na palavra louco ele me olhou fixamente e disse em voz alta:
- Sim, eu
sou louco e os que são como eu, em terra estranha, ficam sem morada, famintos e
sós.
- Perdoa
meus pensamentos – disse-lhe, desculpa-me. Não sei quem és; conquanto as tuas
palavras me causam estranheza, eu te convido para passares a noite em minha
casa.
- Mil
vezes bati à tua porta e tu não ma abriste.
Assegurei-me
então da sua loucura e disse-lhe:
- Vem agora
e passarás a noite em minha casa.
Ele ergueu
a cabeça e respondeu-me:
- Se
soubesses quem sou não me convidarias.
- E quem
és tu? Perguntei-lhe.
A sua voz
rugiu então como as catadupas de uma corrente:
- Eu sou a
revolução que sacode as nações – eu sou a tempestade que arranca as árvores,
que desenvolve os séculos; eu sou o que veio à terra para lançar a espada, e
não a paz.
Ergueu-se
então, com o rosto iluminado, abriu os braços e nas palmas das suas mãos
apareceram as cicatrizes dos cravos. Então caí de joelhos diante d`Ele e
exclamei:
Jesus de
Nazaré!
E ouvi o
que dizia Ele nesse momento:
- “Os
homens festejam o meu nome e os costumes dos dias que circunscreveram a minha
vida entre eles. Porém, eu sou estranho: vivo vagando, do Oriente para o Ocidente,
e não há entre as nações quem conheça a minha verdade. As feras têm as suas
tocas, as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do Homem não têm onde
reclinar a cabeça”.
Impressionado,
olhei para Ele, mas não vi mais que uma coluna de incenso; escutei, e não ouvi
mais que a voz da noite que surgia das profundezas da Eternidade.
Gibran Kallil Gibran
Gibran Kallil Gibran
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