quinta-feira, 8 de julho de 2010

Discurso Sobre a Dignidade do Homem


Nos escritos dos árabes li, venerandos Pais, que Abdalla Sarraceno, quando lhe perguntaram sobre o que lhe parecia sumamente admirável nesta espécie de teatro que é o mundo, respondeu que nada via de mais esplêndido do que o homem. E com este dito concorda o famoso  Hermes: “Grande milagre é o homem, Asclépio!”. (1)

            Ora, enquanto eu procurava o sentido destas sentenças, não me satisfaziam os argumentos que em grande número muitos aduzem sobre a grandeza da natureza humana: ser o homem vínculo das criaturas, familiar às superiores,soberano das inferiores, intérprete da natureza pela agudez dos sentidos, pela pesquisa da razão, pela luz do intelecto, intermediário entre o tempo e a eternidade e, como dizem os persas, cópula Himeneu(2) do mundo, pouco inferior aos anjos segundo o testemunho de Davi.(3)  Grandes coisas estas, sem dúvida, mas não as mais importantes, não tais, isto é, por meio das quais possa justamente arrogar-se o privilégio de uma admiração sem limites. Por que, com efeito, não admirar mais os anjos e os beatíssimos coros do céu?

            Todavia, no fim parece-me ter compreendido por que o homem seja o mais feliz dos seres animados e, por isso, digno de toda admiração e qual seja por fim aquele destino que, tocando-lhe na ordem universal, é invejável não só aos brutos, mas aos astros e aos espíritos ultra mundanos. Coisa incrível e maravilhosa! E como poderia ser diferente, se é justamente por ela que o homem é proclamado e considerado um grande milagre e maravilha entre os viventes?

            Mas qual seria ela, escutai, ó Pais, e dai benignamente ouvidos, em vossa cortesia, a este meu falar. Já o sumo Pai, Deus criador, tinha formado, conforme as leis de uma arcana sabedoria, esta moradia do mundo, tal qual nos aparece, templo augustíssimo da divindade. Havia embelezado com as inteligências o hiperurânio, avivado de almas eternas os globos etéreos, tinha povoado com uma turba de animais de toda espécie as partes vis e torpes do mundo inferior. Contudo, levando a obra à realização, o artífice desejava que aí houvesse alguém capaz de captar a razão de tão grande obra, de amar sua beleza, de admirar sua imensidade. Por isso, tendo já realizado o todo, como atestam Moisés(4) e Timeu(5), por último pensou em produzir o homem. Mas, dos arquétipos não restava nenhum sobre o qual modelar a nova criatura, nem dos tesouros um para entregar como herança ao novo filho, nem dos lugares de todo o mundo permanecia um sobre o qual se sentasse este contemplador do universo. Todos já estavam ocupados; todos haviam sido distribuídos, nos sumos, nos meios, nos ínfimos graus.

            Todavia, não teria sido digno do paterno poder tornar-se como que impotente na última obra; nem de sua sabedoria permanecer incerta na necessidade por falta de conselho; nem de seu benéfico amor, que aquele que era destinado a louvar nos outros a divina liberalidade fosse constrangido a reprová-la em si mesmo.

              Estabeleceu finalmente o ótimo artífice que, àquele ao qual nada podia dar de próprio, fosse comum a tudo aquilo que singularmente tinha atribuído aos outros. Acolheu por isso o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no coração do mundo, assim lhe falou: 

“Não te dei, Adão, nem um lugar determinado, nem um aspecto teu próprio, nem qualquer prerrogativa tua, porque o lugar, o aspecto, as prerrogativas que desejares, tudo enfim, conforme teu voto e teu parecer, obtenhas e conserves. A natureza determinada dos outros está contida dentro de leis por mim prescritas. Tu determinarás a tua, não constrangido por nenhuma barreira, conforme teu arbítrio, a cujo poder te entregarás. Eu te coloquei no meio do mundo, para que daí melhor avistasses tudo aquilo que existe no mundo. Não te fiz nem celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, para que, por ti mesmo, como livre e soberano artífice, tu te modelasses e te esculpisses na forma que tivesses de antemão escolhido. Poderás degenerar nas coisas inferiores, que são os brutos; poderás regenerar-te, conforme tua vontade, nas coisas superiores que são divinas”.

              Ó suprema liberalidade de Deus pai! Ó suprema e admirável felicidade do homem, ao qual é concedido obter aquilo que deseja, ser aquilo que quer. Os brutos, ao nascerem, trazem consigo do seio materno, como diz Lucilio,(6) tudo aquilo que terão. Os espíritos superiores ou desde o início ou pouco depois tornaram-se aquilo que serão pelos séculos dos séculos. No homem que nasce o Pai colocou sementes de toda espécie e germes de toda vida. E, conforme cada um as cultivar, elas crescerão e nele darão seus frutos. E, se forem vegetais, será planta; se sensíveis, será animal; se racionais, tornar-se-á animal celeste; se intelectuais, será anjo e filho de Deus. Todavia, se, não contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no centro de sua unidade, tornado um só espírito com Deus, na solitária escuridão do Pai, aquele que foi colocado sobre todas as coisas estará sobre todas as coisas.
Giovanni Pico della Mirandola

 1-Asclépio, em Corpus Hermeticum, vol. II.
2-Himeneu, ou Himene, era o deus grego das núpcias.
3-Salmo 8,5-6.
5-Platão, Timeu
6-Lucilio, átiras, 623 edição Marx.

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