O Rei Tajuã, do Iêmen, senhor de cento e oitenta mil tamareiras, tinha um vizir chamado Calin-Beg, que era excessivamente gordo e digamos, sem receio da verdade, excessivamente mau.
A gordura espantosa do tal ministro podia ser pesada facilmente em arrobas numa grande balança de ferro: impossível seria, entretanto, calcular a soma das maldades que negrejavam seu coração.
Um dia, ao terminar a audiência costumeira, o maldoso Calin-Beg, com voz grave e solene assim falou ao poderoso sultão:
- Os judeus, senhor, constituem uma raça detestável. O ouro obtido pelo trabalho penoso de nossas mãos vai cair finalmente em poder deles. São infiéis incorrigíveis e a todo instante proferem blasfêmias contra os preceitos mais puros e elevados da nossa religião. Penso que devemos expulsá-los o mais depressa possível do nosso país e venho pedir-vos para isso a necessária autorização.
O rei Tajuã, tolerante e bondoso, não ocultava a sua simpatia pelos judeus que viviam em seus domínios. Não via, aliás, razão alguma para repelir e martirizar um povo que não perturbava a paz de suas cento e oitenta mil palmeiras e, ao contrário, contribuía de algum modo para o progresso de seu reino. Disse pois ao seu odiento vizir:
- Uma vez que julgas medida útil ao bem-estar de meus súditos eu não hesitaria em decretar, de momento, a expulsão de todos os israelitas. Como medida preliminar desejo, entretanto, observar como vivem e trabalham os judeus. Vamos, meu amigo, dar ligeiro passeio pelos arredores da cidade.
Acudiu pressuroso o ministro:
- Julgo interessante a vossa lembrança, ó rei! Tereis ocasião de ver durante a nossa excursão que os judeus vivem como chacais imundos, praguejando, cheios de ódio contra os servos de Allah (exaltado seja o Altíssimo!).
Momentos depois o rei Teijuã, acompanhado do seu primeiro ministro, saía a passear pelos bairros mais pobres da cidade, observando atentamente os míseros casebres em que viviam os israelitas.
Em dado momento aproximou-se o soberano de um pobre tecelão que trabalhava sentado à soleira da porta e disse-lhe em tom amistoso:
- Por Allah, meu amigo! Vejo-o a trabalhar incessantemente. ‘Dos dez já tira você para os doze?’
Respondeu o tecelão, esboçando um sorriso muito triste:
- Ahl Senhor! Eu dos dez não tiro nem para ‘os trinta e dois!’
Ao ministro, que tudo ouvia com a maior atenção, causou não pequeno espanto aquele estranho diálogo.
O rei Tajuã, entretanto, parecendo não se contentar com a resposta do pobre judeu, interrogou-o novamente:
- E quantos são para você os ‘trinta e dois de cada dia?’
- Quatro, ‘com dois incêndios’ - tornou o outro.
Sorriu o rei ao ouvir essa resposta, cujo sentido a inteligência do vizir não soube penetrar, e insistiu com bondade:
- Se esperas algum incêndio para breve, por que ‘não depenas logo o pato?’ Com as penas poderás ‘apagar o fogo’.
Retorquiu o tecelão:
- Assim espero, senhor. Com a ajuda de Deus em breve depenarei o pato.
Ao regressar ao palácio, o rei observou muito sério ao vizir:
- Estou certo, meu amigo, que compreendeste perfeitamente a conversa que tive há pouco com aquele pobre judeu.
- Infelizmente, senhor, confessou constrangido o ministro - ouvi as vossas perguntas e todas as respostas do israelitas, sem nada entender!
- Pela glória do Profeta! - cortou o rei, - a declaração que acaba de fazer é humilhante para um vizir! Não posso tolerar semelhante fraqueza! Vou conceder-te o prazo de três dias para descobrires a significação perfeita das minhas perguntas e explicares claramente todas as respostas dadas pelo judeu. Se não o conseguires serás demitido, por incapacidade, do cargo de vizir.
O odiento ministro, esmagado pela terrível ameaça do rei, procurou por todos os meios a decifração do mistério.
As perguntas do rei não tinham realmente sentido algum. A primeira era obscura charada:
- "Dos dez já tira você para os doze?"
E a resposta, logo a seguir dada pelo judeu? Não passava, afinal, de um verdadeiro disparate:
- "Dos doze, senhor, eu não tiro nem para os trinta e dois!"
A segunda indagação do rei parecia traduzir completo absurdo:
- "E quanto são para você os trinta e dois de cada dia?"
Eis a enigmática resposta formulada pelo israelita:
- "Quatro com dois incêndios!"
Havia ainda, como complemento diabólico, a terceira pergunta do soberano:
- "Se esperas incêndio para breve, por que não depenas logo o pato? ‘Com as penas poderás apagar o fogo’."
Convenceu-se o rancoroso vizir de que a sua pobre e acanhada inteligência não dispunha de recursos para deslindar o segredo que envolvia o estranho diálogo travado entre o rei e o israelita.
Consultou às ocultas seus amigos mais atilados, mas nenhum deles soube achar uma explicação para o caso. Recorreu aos ulemás que viviam entre livros e manuscritos, e os sábios, depois de largas divagações filosóficas, declararam-se incapazes de esclarecer o mistério.
Que fazer?
Preocupado com a grave ameaça que lhe pesava sobre os ombros, resolveu enfim procurar a única pessoa que poderia auxiliá-lo naquela dependura.
Foi, pois, sem mais hesitar, à casa do tecelão judeu.
Interrogado pelo vizir, respondeu o velho israelita:
- Sinto dizer-vos, senhor, que sou pobre e luto para viver modestamente. Não posso perder, portanto, as boas oportunidades que se me oferecem para melhorar a triste condição de penúria em que me encontro. Exijo, pois, o pagamento de cem dinares pela explicação da primeira pergunta.
O ministro Calin-Beg tirou imediatamente da sua bolsa a quantia pedida e entregou-a ao judeu:
- A primeira pergunta, ó vizir! - começou o israelita - é muito simples. O nosso bom soberano queria saber "se dos dez eu tirava para os doze", isto é, se com os dez dedos da mão eu ganhava o suficiente para viver durante os doze meses do ano. Respondi-lhe então (essa é a verdade) que "dos dez eu não tirava nem para os trinta e dois", isto é, para os trinta e dois dentes da minha boca, ou melhor, com os dez dedos da mão eu não chegava a obter o indispensável para a minha alimentação!
- Realmente! - exclamou radiante o ministro, - muito racional e clara tua explicação. Compreendi tudo perfeitamente. E a segunda parte - ó filho de Israel! - que sentido tem?
- Para a explicação da segunda parte desse enigma - impôs o tecelão - quero receber um prêmio de duzentos dinares.
Satisfeito imediatamente, o judeu depois de guardar o dinheiro assim falou:
- Quando o nosso glorioso soberano me interpelou daquela forma: "E quantos são para você os trinta e dois de cada dia?”, compreendi que ele queria saber o número de pessoas mantidas por mim, isto é, “quantos são os trinta e dois (dentes) a que dou de comer a cada dia”. A minha resposta é clara e evidente: "Quatro, com dois incêndios". As quatro pessoas são: minha mulher e três filhos. "Com dois incêndios" significa - com duas filhas para casar.
- Pois o casamento de uma filha acarreta para nós judeus tanta despesa, tantos transtornos e aborrecimentos, que pode ser comparado a um verdadeiro incêndio. Com a minha resposta, clara e precisa, informei o rei sobre o número de pessoas da minha família, indicando até o número exato de filhas que pretendo casar.
- É curioso! - refletiu o vizir - Sinto agora que o enigma não tem realmente dificuldade alguma. E a última pergunta? Como poderei interpretá-la?
Para decifrar a terceira e última pergunta o judeu, alegando maior dificuldade e embaraço, exigiu o pagamento de quinhentos dinares.
Logo que se viu de posse do dinheiro o astucioso israelita explicou:
- A última pergunta formulada pelo glorioso soberano tem um sentido muito claro: se espera incêndio em sua casa, por que não “depena o pato?”, isto é, "se precisa de recursos para casar sua filha, por que não toma o dinheiro de um tolo qualquer?". “Pato”, como ninguém ignora, é o indivíduo pouco inteligente, do qual podemos tomar sem dificuldade quantia por vezes avultada.
- Tendo compreendido o sentido exato das palavras do rei, respondi que “ainda tinha, com a ajuda de Deus, esperança de depenar o pato”, isto é, de arranjar com um lorpa qualquer o dinheiro necessário. E foi precisamente o que aconteceu, senhor ministro. Com o dinheiro que acabo de receber de vossas mãos generosas poderei custear o próximo casamento de minha filha mais velha!
Retirou-se envergonhado e furioso o vizir, mais furioso do que envergonhado, ao perceber que, no fim de contas, ele fizera o papel ridículo de ‘pato’, isto é, de idiota!
Ao chegar ao palácio foi ter à presença do monarca e declarou que estava pronto a explicar o sentido de todas as enigmáticas perguntas.
Sorriu o rei do Iêmen ao ouvir aquela confissão de seu maldoso secretário, e lhe disse:
- E ainda pretendes, ó vizir, expulsar de nosso país um povo tão vivo e inteligente? Acabaste de receber a prova eloqüente de que um simples e inculto remendão judeu é capaz de reduzir ao mísero papel de "pato" o vizir mais atilado do mundo.
Malba Tahan
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