"A verdade de outra pessoa não está no que ela te revela, mas naquilo que não pode revelar-te. Portanto, se quiseres compreendê-la, não escute o que ela diz, mas antes, o que ela não diz". GKG
segunda-feira, 21 de março de 2011
Foi a Abadessa
Ninguém sabe como foi mas todos concordam que foi a abadessa.
O preboste mandou instaurar um inquérito e o condestável ordenou que os arautos percorressem os caminhos anunciando que fora a abadessa.
E o povo tremeu, ouvindo que fora a abadessa.
Grandes flagelos, grandes angústias e penas desabariam sobre a cabeça do rei e do povo. Nada se podia fazer: a abadessa já havia feito.
O arcipreste suspeitou do outro lado da notícia e baixou a bula cobrindo de opróbrio os verdugos que levassem a abadessa ao catafalco.
Mas o esmoler-mor contestou o condestável e exigiu que em nome da fé e do rei a verdade fosse feita. Contestado, o condestável mobilizou seus arqueiros e concitou o capelão a distribuir pão aos filhos do povo e aos camponeses famintos que se levantaram contra a abadessa e contra a coisa que ela havia feito.
Mais complicada ficou a situação quando o preboste envenenou o arcediago e o arcipreste caiu fulminado quando soube que a abadessa fugira em cima de um corcel de crinas ao vento.
Os camponeses então resolveram voltar para suas terras, pois não valia a pena matar ou morrer por causa da coisa que a abadessa tinha ou não tinha feito.
Ante a iminência do saque às cidades, o esmoler-mor ordenou que se queimassem as feiticeiras e numa só noite foram devoradas pelo fogo nada menos de 567 feiticeiras de diversos e criminosos feitios e malefícios.
Os arautos percorreram novamente as cidades famintas e os campos devastados distribuindo hinos de louvor ao rei e à paz que voltava ao reino depois que a abadessa fizera a coisa.
E estavam as coisas nesse pé – inclusive a coisa que a abadessa havia feito – quando, alta noite, surgiu no palácio, vinda dos campos, a assombrosa notícia de que não fora a abadessa que fizera a coisa pois coisa nenhuma havia sido feita.
Reza a lenda que a abadessa, depois de muito cavalgar no seu corcel de crinas ao vento, em sabendo que não havia feito a coisa, resolveu fazê-la.
Carlos Heitor Cony
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